É como traduzir o silêncio que me sustenta. Páginas em relevo com o meu sagrado. Meu segredo. Secreto santuário. Flores do meu jardim, frutos do meu quintal. Mais uma parte que parte, põe-se a caminho, segue viagem, vai embora, retira-se, afasta-se, foge. Mais uma parte que parte, dividi-se, separa, quebra, reparte-se. Mais uma parte que parte, tem origem ou começo, procede, provém, decorre, deriva, nasce de mim.Mais uma parte do segundo mais tarde, nas ruas que escolhi.

domingo, 14 de novembro de 2010

estou

    "Estou tonto, 
    Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar, 
    Ou de ambas as coisas. 
    O que sei é que estou tonto 
    E não sei bem se me devo levantar da cadeira 
    Ou como me levantar dela. 
    Fiquemos nisto: estou tonto. 

    Afinal 
    Que vida fiz eu da vida? 
    Nada. 
    Tudo interstícios, 
    Tudo aproximações, 
    Tudo função do irregular e do absurdo, 
    Tudo nada. 
    É por isso que estou tonto ... 

    Agora 
    Todas as manhãs me levanto 
    Tonto ... 

    Sim, verdadeiramente tonto... 
    Sem saber em mim e meu nome, 
    Sem saber onde estou, 
    Sem saber o que fui, 
    Sem saber nada. 

    Mas se isto é assim, é assim. 
    Deixo-me estar na cadeira, 
    Estou tonto. 
    Bem, estou tonto. 
    Fico sentado 
    E tonto, 
    Sim, tonto, 
    Tonto... 
    Tonto." [Álvaro de Campos*]

Sinto-me assim: tonto!  
Consequência do que se quebrou. 
Permiti.

*Álvaro de Campos é dos mais um dos heterônimos mais conhecidos do poeta português Fernando Pessoa. Este fez uma biografia para cada um dos seus heterônimos e declarou assim que Álvaro de Campos: «Nasceu em Tavira, teve uma educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Germânia estudar engenharia, primeiro enfermaria e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inatividade.»
Era um engenheiro de educação inglesa e origem portuguesa, mas sempre com a sensação de ser um estrangeiro em qualquer parte do mundo. Pessoa disse também em relação a este heterónimo que :

"Eu fingi que estudei engenharia. Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda. Meu coração é uma avozinha que anda Pedindo esmolas às portas da alegria."
"Que náusea de vida !
Que abjecção esta regularidade ! Que sono este ser assim !"



2 comentários:

MARCUS SOCCO disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rô Rezende disse...

Fernando Pessoa (e seus muitos "eus")é uma delícia de se ler, e ao mesmo tempo é perturbador. Esse eu não conhecia!

Para mim o melhor dele é aquele famosinho: "O poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor, a dor que deverás sente."

A melhor descrição do poeta e sua alma que eu conheço!

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